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 | O comboio do Tua, como outros comboios que serviam o Portugal mais  profundo, só já existe no nosso imaginário.
 O último corpo das  vítimas da Linha do Tua foi resgatado e, em seguida, uma pedra com o peso de um  grande silêncio e indiferença abateu-se sobre ela. Para trás e pendente de  conclusão, ficou mais um famigerado inquérito só para entreter e português ver  que, neste País, nada fica sem apuramento da verdade, sem avaliação de  responsabilidades e sem punição. Exemplos bem convincentes aparecem com  frequência à luz do dia, pelo que o povo está cada vez mais confiante nas  autoridades que temos.
 A morte lenta da Linha do Tua vai, no entanto,  avançando, mas sem que o desfecho, há muito previsto, tenha para já data  marcada. Sendo a sua saúde muito precária, vai, todavia, sobrevivendo ligada à  máquina alimentada pelos autarcas dos concelhos por ela servidos e que lhe  proporciona os cuidados intensivos capazes de lhe atrasar a morte. Todos os que  amamos a Linha do Tua esperamos que essa luta, dos mirandelenses principalmente,  não seja inglória, quanto mais não seja reconvertendo-a e aproveitando-a para  fins turísticos. Seria a maneira de preservar um património que faz parte da  história e da vida de uma região muito deprimida, esquecida e cada vez mais  abandonada pelo poder central, apesar das promessas que sobem de tom em tempo de  eleições. Este povo honrado, honesto, trabalhador, do melhor que Portugal tem,  anda há muito a ser enganado. É preciso tomar consciência disto, bater o pé e  criar novas e mais originais formas de luta, enquanto não nos roubem também a  vontade e a esperança.
 A comunicação social durante dias, enquanto o produto  teve boa venda, falou da Linha do Tua, mas só teve esta grande oportunidade ao  fim de 120 anos. Foi preciso ocorrer uma tragédia para que as entidades  responsáveis se vissem confrontadas também com os problemas da segurança e com a  necessidade da manutenção daquela linha-férrea. Quando tanto se tem investido  nas vias rodoviárias, verdadeiros campos onde se trava uma sanguinária guerra  civil, com mais baixas do que as que ocorriam nas três frentes da antiga guerra  do ultramar, bem podiam aproveitar o exemplo da Linha do Tua para concluírem que  as vias ferroviárias são bem mais seguras. Além de mais seguras são também muito  menos poluentes.
 Os nossos governantes, os actuais de forma escandalosa,  fecham e concentram desenfreadamente serviços essenciais para as populações,  mandando os utentes para as estradas, tornando o trânsito cada vez mais caótico.  Trocam estradas de primeira por urgências de segunda. Só que ao povo não lhe  está a agradar nada o negócio. As ambulâncias, por exemplo, também não têm asas  ou escudos que as protejam dos acidentes. Os habitantes do interior, onde as  distâncias a percorrer são maiores, são os grandes sacrificados desta política  cega que só pensa em beneficiar os grandes centros urbanos.
 Os comboios  deixaram de circular em Trás-os-Montes. Nem a Linha do Douro escapou a essa  sanha devoradora dum transporte que, na opinião de políticos vesgos e sem  vergonha, deixou de ser essencial. Do outro lado da fronteira, nuestros hermanos  vão recuperando "o troço da linha entre Salamanca e Veja de Terrón," como dizia  o distinto jornalista Manuel Carvalho, amigo da sua terra e que sente os  problemas da sua região, num editorial do Público. Isso acontece mesmo às portas  de Barca de Alva, o que devia envergonhar ainda mais os nossos governantes.  Assim como não se envergonham que as gentes de Miranda do Douro, para irem a  Bragança, tenham que fazer a viagem por Espanha ou os doentes das terras  fronteiriças tenham que recorrer a médicos espanhóis e as grávidas tenham que  dar à luz os filhos do outro lado da fronteira. A minha mãe pariu-me em casa,  porque na minha terra, naquele tempo, não havia ainda luz, parafraseando mais  uma vez o meu amigo Morais.
 A Linha do Tua está ameaçada de morte, apesar de  reunir óptimas condições para o turismo. A paisagem que atravessa é  deslumbrante. Uma vegetação frondosa e variada, os vinhedos, as escarpas dos  montes, verdadeiras gargantas que se abrem de admiração ao contemplarem aquele  serpentear, por vezes apressado, do rio Tua.
 É urgente, por isso, que alguém  a defenda, senão terá o mesmo fim das outras que atravessavam Trás-os-Montes.  Porque não se defendeu, por exemplo, com unhas e dentes o troço da Linha do  Corgo entre Chaves e Vila Pouca de Aguiar que servia uma zona de turismo por  excelência? Tudo se passou, no entanto, na paz dos deuses e com a maior  indiferença dos líderes locais.
 A grande ameaça que pende sobre a Linha do  Tua é a construção de uma barragem. Para servir quem? Os mesmos senhores de  sempre, os do grande capital ou que moram nas grandes cidades. Assim como  acontecerá com as eólicas que vão nascendo no cimo dos nossos montes. Para  investir nas linhas-férreas de Trás-os-Montes, modernizando-as e viabilizando-as  economicamente, não há dinheiro, mas se for para nos sacarem recursos, então  aparece sempre. Também não falta dinheiro para enterrar nas vias que servem as  grandes cidades de todo o litoral e para se projectarem TGV's.
 O comboio do  Tua, como outros comboios que serviam o Portugal mais profundo, só já existe no  nosso imaginário. É uma saudade imensa recordar a minha primeira partida da  estação de Mirandela para Bragança, à procura de conhecimentos para o futuro.  Recordar a primeira viagem que fiz ao Porto, já com dezoito anos, para a  realização de uns exames médicos. Recordar a viagem que não coube num dia, de  Mirandela até Mafra, para frequentar o C.O.M., acompanhado do meu saudoso amigo  Ricardo Sequeira, de Miradeses. Recordar ainda a viagem mais longa de comboio,  de Lisboa a Chaves, no meu regresso da guerra, depois de dois anos em  Moçambique. Recordar, por último, o meu comboio do Tua que serviu de relógio a  meus saudosos pais e a outra gente do campo, indicando-lhe com o seu apito a  hora do intervalo para descanso e de comerem o naco de pão que o diabo lhes  amassava.
 Hoje é uma dor de alma ver os antigos edifícios das estações em  completa ruína. Por essas linhas encerradas, abandonadas e desmanteladas dói-me,  como a outros bons transmontanos, não aos que sobem das capitais para se  pavonearem nos congressos, ver circular carruagens invisíveis a abarrotar de  desilusão, de tristeza e de saudade.
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