Thursday, March 08, 2007

Com a devida vénia

Pelo meu prisma
Meu comboio do Tua

O comboio do Tua, como outros comboios que serviam o Portugal mais profundo, só já existe no nosso imaginário.

O último corpo das vítimas da Linha do Tua foi resgatado e, em seguida, uma pedra com o peso de um grande silêncio e indiferença abateu-se sobre ela. Para trás e pendente de conclusão, ficou mais um famigerado inquérito só para entreter e português ver que, neste País, nada fica sem apuramento da verdade, sem avaliação de responsabilidades e sem punição. Exemplos bem convincentes aparecem com frequência à luz do dia, pelo que o povo está cada vez mais confiante nas autoridades que temos.
A morte lenta da Linha do Tua vai, no entanto, avançando, mas sem que o desfecho, há muito previsto, tenha para já data marcada. Sendo a sua saúde muito precária, vai, todavia, sobrevivendo ligada à máquina alimentada pelos autarcas dos concelhos por ela servidos e que lhe proporciona os cuidados intensivos capazes de lhe atrasar a morte. Todos os que amamos a Linha do Tua esperamos que essa luta, dos mirandelenses principalmente, não seja inglória, quanto mais não seja reconvertendo-a e aproveitando-a para fins turísticos. Seria a maneira de preservar um património que faz parte da história e da vida de uma região muito deprimida, esquecida e cada vez mais abandonada pelo poder central, apesar das promessas que sobem de tom em tempo de eleições. Este povo honrado, honesto, trabalhador, do melhor que Portugal tem, anda há muito a ser enganado. É preciso tomar consciência disto, bater o pé e criar novas e mais originais formas de luta, enquanto não nos roubem também a vontade e a esperança.
A comunicação social durante dias, enquanto o produto teve boa venda, falou da Linha do Tua, mas só teve esta grande oportunidade ao fim de 120 anos. Foi preciso ocorrer uma tragédia para que as entidades responsáveis se vissem confrontadas também com os problemas da segurança e com a necessidade da manutenção daquela linha-férrea. Quando tanto se tem investido nas vias rodoviárias, verdadeiros campos onde se trava uma sanguinária guerra civil, com mais baixas do que as que ocorriam nas três frentes da antiga guerra do ultramar, bem podiam aproveitar o exemplo da Linha do Tua para concluírem que as vias ferroviárias são bem mais seguras. Além de mais seguras são também muito menos poluentes.
Os nossos governantes, os actuais de forma escandalosa, fecham e concentram desenfreadamente serviços essenciais para as populações, mandando os utentes para as estradas, tornando o trânsito cada vez mais caótico. Trocam estradas de primeira por urgências de segunda. Só que ao povo não lhe está a agradar nada o negócio. As ambulâncias, por exemplo, também não têm asas ou escudos que as protejam dos acidentes. Os habitantes do interior, onde as distâncias a percorrer são maiores, são os grandes sacrificados desta política cega que só pensa em beneficiar os grandes centros urbanos.
Os comboios deixaram de circular em Trás-os-Montes. Nem a Linha do Douro escapou a essa sanha devoradora dum transporte que, na opinião de políticos vesgos e sem vergonha, deixou de ser essencial. Do outro lado da fronteira, nuestros hermanos vão recuperando "o troço da linha entre Salamanca e Veja de Terrón," como dizia o distinto jornalista Manuel Carvalho, amigo da sua terra e que sente os problemas da sua região, num editorial do Público. Isso acontece mesmo às portas de Barca de Alva, o que devia envergonhar ainda mais os nossos governantes. Assim como não se envergonham que as gentes de Miranda do Douro, para irem a Bragança, tenham que fazer a viagem por Espanha ou os doentes das terras fronteiriças tenham que recorrer a médicos espanhóis e as grávidas tenham que dar à luz os filhos do outro lado da fronteira. A minha mãe pariu-me em casa, porque na minha terra, naquele tempo, não havia ainda luz, parafraseando mais uma vez o meu amigo Morais.
A Linha do Tua está ameaçada de morte, apesar de reunir óptimas condições para o turismo. A paisagem que atravessa é deslumbrante. Uma vegetação frondosa e variada, os vinhedos, as escarpas dos montes, verdadeiras gargantas que se abrem de admiração ao contemplarem aquele serpentear, por vezes apressado, do rio Tua.
É urgente, por isso, que alguém a defenda, senão terá o mesmo fim das outras que atravessavam Trás-os-Montes. Porque não se defendeu, por exemplo, com unhas e dentes o troço da Linha do Corgo entre Chaves e Vila Pouca de Aguiar que servia uma zona de turismo por excelência? Tudo se passou, no entanto, na paz dos deuses e com a maior indiferença dos líderes locais.
A grande ameaça que pende sobre a Linha do Tua é a construção de uma barragem. Para servir quem? Os mesmos senhores de sempre, os do grande capital ou que moram nas grandes cidades. Assim como acontecerá com as eólicas que vão nascendo no cimo dos nossos montes. Para investir nas linhas-férreas de Trás-os-Montes, modernizando-as e viabilizando-as economicamente, não há dinheiro, mas se for para nos sacarem recursos, então aparece sempre. Também não falta dinheiro para enterrar nas vias que servem as grandes cidades de todo o litoral e para se projectarem TGV's.
O comboio do Tua, como outros comboios que serviam o Portugal mais profundo, só já existe no nosso imaginário. É uma saudade imensa recordar a minha primeira partida da estação de Mirandela para Bragança, à procura de conhecimentos para o futuro. Recordar a primeira viagem que fiz ao Porto, já com dezoito anos, para a realização de uns exames médicos. Recordar a viagem que não coube num dia, de Mirandela até Mafra, para frequentar o C.O.M., acompanhado do meu saudoso amigo Ricardo Sequeira, de Miradeses. Recordar ainda a viagem mais longa de comboio, de Lisboa a Chaves, no meu regresso da guerra, depois de dois anos em Moçambique. Recordar, por último, o meu comboio do Tua que serviu de relógio a meus saudosos pais e a outra gente do campo, indicando-lhe com o seu apito a hora do intervalo para descanso e de comerem o naco de pão que o diabo lhes amassava.
Hoje é uma dor de alma ver os antigos edifícios das estações em completa ruína. Por essas linhas encerradas, abandonadas e desmanteladas dói-me, como a outros bons transmontanos, não aos que sobem das capitais para se pavonearem nos congressos, ver circular carruagens invisíveis a abarrotar de desilusão, de tristeza e de saudade.

Data de Publicação: 08/03/2007
Artigo de: Armando Ruivo